Simplesmente atravessei...


Há coisas que eu desejaria apagar definitivamente da memória. Deletá-las, inclusive da lixeira. Mas a luta que travam a memória e o esquecimento é infinita, como já disse Kundera. Terei de me conformar e acomodar esse registro histórico de modo que doa menos. Talvez, comentando, escrevendo sobre ele, intelectualize-o, minimize-o, reduza-o a uma das muitas ficções que já escrevi. Talvez, trazendo-o à tona, encarando-o face-a-face, vença-o. Talvez. Vamos lá. Ali pelos meus 12 anos, quando meu pai tivera um espasmo de prosperidade econômica, compramos uma casa no Bairro Patagônia, em Vitória da Conquista. Deixando, de vez, nossa casa na Avenida Sergipe – onde há um enorme aglomerado de registros igualmente deletáveis. Mas esses são outros fantasmas. Enfim, meu pai tivera um espasmo de prosperidade e tínhamos uma frota de quatro bicicletas. Isso mesmo: quatro. Uma monark vermelha, de paínho, uma cargueira, que eu e Petrônio (que éramos os únicos que trabalhávamos) usávamos para trabalhos de entrega e tudo o mais que se quisesse transportar, uma outra de cor indefinida e de modelo igualmente indefinido, e a Monark de Paulinho (Paulinho, Maurício e Fábio nada faziam nessa e nada fizeram todas as épocas passadas, presentes e futuras). Eu e Petrônio podíamos ser vistos a qualquer hora no trajeto Bairro Brasil – Patagônia, já que, para qualquer coisa, havia eu e havia ele, um era reserva do outro e vice-versa. Pois bem. Os dois bairros são ligados pela Avenida Frei Benjamim, que é cortada transversalmente pela Rua do Aeroporto (divisa dos bairros). Foi no ponto central da cruz formada por essas duas avenidas que meu drama quase vira uma tragédia. Vinha eu com a bicicleta de cor e modelo e marca indefinidos pela Frei Benjamin, rumo ao Patagônia. Sabe-se lá por que razão, eu trazia, como passageiro, Maurício, que, na época, devia estar com seus oito anos. Maurício era conhecido na nossa rua e nas adjacências como “Botijão de Gás”, que, com o uso, evoluiu para “Bujão”, alcançando, atualmente, a condição artística de Bujja. Algum numerólogo há-de me explicar o efeito do acréscimo de mais um “j”. Maurício era verdadeiramente um botijão de gás: gordinho, baixinho e sem pescoço. Empurrado, rolaria ladeira abaixo. Era esse mesmo Maurício que estava na minha traseira no trajeto rumo à Patagônia. Há muitos anos que todos na família (e fora dela) me chamam de “voador”, “lunático”, “esquecido”, etc. É que, às vezes, me pego sonhando acordado. Não sei no que pensava naquele dia. Mas, seja lá o que fosse, me fez atravessar a Rua do Aeroporto sem olhar para ver se vinha algum carro. Simplesmente atravessei... parcialmente. Faltando coisa de 1/3 para a travessia completa, um carro que vinha à minha esquerda passou pelo bicicleta um palmo de distância da bunda abundante de Maurício. Só pude perceber o vulto do carro. Atravessei a rua. Cantando pneu, o motorista do carro dera ré e, sem descer do carro, gritou-me todo o seu Dicionário de Xingamentos Essenciais. Até ai, tudo bem. Xingou e foi embora, resmungando uma série de outras coisas, que só hoje começo a entender o significado. Parei a bicicleta. Olhei para Bujja. Fiquei imaginando que, tivesse ocorrido o pior, e ele não estaria ali. Fiquei imaginando que, tivesse eu atrasado menos de um segundo, e Bujja (e eu) comporia uma dessas estatísticas que apontam acidentes envolvendo bicicletas e seus ciclistas imprudentes. Fiquei imaginando que, fosse outro o final da história, e minha mãe talvez nunca mais passasse pelo cruzamento da Frei Benjamin com a Aeroporto. Fiquei imaginando tudo aquilo que só um sujeito sonhador-lunático-esquecido-voador pode imaginar. Trêmulo, conduzi Bujja pra casa. Encostei a bicicleta no meio-fio. Tentei, inutilmente, reduzir minha freqüência cardíaca. Entrei em casa. Maínha lavava roupas no quintal. Ela hoje tem passe livre nos ônibus da cidade. Muito frequentemente, indo para a casa de minha irmã Marlúcia, passa inevitavelmente pela Frei Benjamim, no cruzamento do aeroporto, onde há, atualmente, um semáforo. E aquele cruzamento não quer dizer absolutamente nada para ela. Absolutamente nada.

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